O primeiro Raimundo apareceu no carnaval. Em seguida vários da mesma espécie, distribuídos em diversos setores, ao decorrer dos primeiros meses. Mas foi na semana depois das cinzas, quando eu ainda procurava um de carnaval, que Raimundo Luiz me apareceu. Ele pediu pra surfar no sofá da casa que não era mais minha, na cidade de onde havia partido. E deu-se um atraso astral.

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Comecei a estender a palavralogia ao campo do R e resgatar conexões com Raul, Alfredo, André, Marina, Eduardo, Vera, Ricardo, Rafael e mais uma lista de nomes e pessoas a mim ligadas pelo elo dos erres. Os erres que ligavam meu nome ao de outros era por mim interpretado como um anúncio de uma grande coisa: desses elos de laço e de nó, sempre atados num movimento invisível e desconhecido, sempre grandiosos. Sabia é que havia uma relação, um elo, que fosse, entre nossos “rês”, como dizemos aqui. E, além disso, o r de mar e de ar e de amor, é claro, mas, sobretudo a diversidade fonética de dizer o rê. Eu gostava especialmente do /r/ retroflexo e provavelmente pediria que ele me dissesse no ouvido “estandarte”, para vê-lo vibrar a língua e depois juntar a minha à dele, para vibrarmos, junto, em L. L, nosso segundo elo cruzado.

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Voltei pra a casa que não era mais minha e reencontrei-me com a parede de escritos, o livro de citações de porta e janela trancadas. Tinha lá escrito em azul-marinho: eu hospedo infratores. Mas eu não hospedava mais ninguém e queria tê-lo tido hóspede, dançado com ele, pela casa afora, naquele cenário de palavras, mas fui embora antes do encontro que marcamos há anos-luz em algum outro mundo. Fui embora de novo, dessa vez de vez e deixei meus cachos em Brasília no mesmo adeus que dei àquelas palavras e às reminiscências das velhas histórias.

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Havia deixado os cachos em Brasília e seguido a vida em frente sem cabelo, sem fios, quase sem memória. Quando cheguei, recebi a primeira carta roxa. Era um presságio. Raimundo Luiz começou a me enviar pelo correio cartas homônimas de tarô. Acompanhada delas, um carretel de linhas: ao puxar o fio, me emaranhava em suas poesias dependuradas. Sei que agora correspondências chegam o tempo todo em nome de Raimundo. E me pergunto, coçando o coro cabeludo com mania de careca, que diabos isso significa.

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Ele disse qualquer coisa, mas significamente encantadora e mágica como sempre o faz, quando distraído, e imediatamente reconheci que ele era o moço das cartas. Foi aí que bati na porta. Três tocs. Quando ele perguntou quem era, eu disse que era a moça das cartas. Que cartas?, ele disse. As do correio. As do correio eletrônico, respondi.

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Eu oferecia malhas e rendas e pontos-parágrafos e tecia nossa colcha, com os fragmentos de nossas mensagens, nas linhas tortas da espera. E de repente ia se formando um mundo vasto de miudezas diante dos meus olhos. Vez em quando foi com esse tecido que me fiz saia e saí rodopiando pela noite, para reencontrar-me com a aurora das madrugadas. E era ali, ilhada pelo mar e com os pés na areia, que queria tê-lo vivo, ao vivo.

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Só Raimundo Luiz ficou na profusão de Raimundos. O mais vasto e tão vasto como todos eles, mas o mais Raimundo de todos ficou. E ele era o único que eu nunca tinha posto os olhos e, no entanto, o único capaz de corresponder o olhar.

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Puxei uma carta no baralho para nós e saiu a Lua. Corri léguas para caber nas horas. Corri para ultrapassar o atraso que nos mantinha caros desconhecidos. Corri para não ser ultrapassada pelas 40 semanas lunares e as 60 horas de trabalho. Mas era um atraso astral e eu não cheguei.