Não tive nem mais um segundo depois daquela madrugada. Nenhum segundo para considerar sozinha aquela realidade. Hiper realidade, entendo hoje. E as lacunas me tomaram de tal forma que enlouqueci, confesso, enlouqueci. Tudo porque caí nas mãos dos sóbrios e não pude mais considerar tal realidade sozinha. Me foram enchendo de frases, rótulos, sub-textos, canções de ninar. E o meu tempo de considerá-la sozinha, quêdê? Mudo. Foram 20 luas, vinte luas de lapso, silêncios e gavetas vazias. Fui trancafiada na província, essa era a idéia, a paranóia. E a paranóia é um teatro, é isso? Não consigo separar as coisas e permito, concedo que os loucos saiam por aqui fazendo cortes nos tecidos de meu texto. Excluo meus leitores. Excluo. Preciso considerar sozinha aquela realidade. Preciso voltar para a última parada, retornar a esse trajeto invertido e partir de um domingo em que decidi, sem volta, esta realidade. Escolhi, no escuro, confesso, mas escolhi pela ação, pelo movimento, pelo prolongamento da vida. Nem sei a grandiosidade exata de tal gesto, mas sempre soube que era grandioso. E tomei por isso, decidi pela grandiosidade que me tomou na primeira possibilidade real de estar grávida. Era grandioso porque eu havia me emprenhado de terra, e a minha terra havia me feito fértil.
Paro um pouco e rememoro tudo que se passou nessas últimas vinte luas. É estranho, mas há uma certa saudade, estranha ainda, naturalmente, mas uma saudade da tragicomicidade dessas vinte luas. O corpo, o nosso corpo – corrijo com o que ele me ensinou de que somos o nosso corpo – nós, portanto, vamos virando Outro que não nós mesmas, embora naquela lua a gravidez fosse nada mais que dois traços tingidos num teste de farmácia.
Isso tudo me faz lembrar que no mesmo ônibus, minutos antes da primeira ponta de desconfiança, eu pensava que eu tinha uma colher de melodrama em mim e ia dizer a Ele, olhe, você precisa entender isso. O coletivo contornava São Caetano e de alguma ladeira eu avistei o Bonfim e não entendi como havia surgido mar por entre aquele horizonte de barracos. “Eu dei a volta na Baía?”, me indaguei ainda na confusão daquela profusão de narrativa visual. Sei que soube que era um movimento circular. E foi naquela volta que dei em mim mesma, que cambaleei e tomei uma grande rasteira da vida.
É, eu não tive nem mais um segundo depois daquela madrugada, depois daquela viagem a São Caetano. Foram tantas luas que não tive fôlego de acompanhar a vida. E por isso, dizer. Foram tantas voltas, voltas, voltas, quantas voltas dei em mim mesma para me levantar. E quantas foram as explicações, até que por fim decorei uma e fiquei repetindo, que nem gravador, aquilo que nem eu mesma sabia. E quantas foram as perguntas e as não respostas que era eu agora a responsável pelas lacunas, em dar aos outros paredes em branco.

*

Quando completei as vinte e uma luas, lembrei das vinte e duas cartas. Era isso que dizia o vigésimo primeiro arcanjo, entendi depois de futucar o baralho, há tanto tempo não aberto. Era essa a transformação, o chão onde ainda nem dou pé.
Isso não é transitório, foi a única coisa que pude constatar e mesmo assim não entender.
É a saída do trânsito para plantar, me plantar, penso agora.
João me estende a mão, ele está no banco ao lado. Foi ele quem me entregou as sementes que secavam na janela. Eu já havia me esquecido delas, já havia me esquecido que levava sementes no bolso, que estava fértil, que tudo estaria prestes a mudar. Fizemos delas muda, mexendo e regando o solo pelo simples prazer do movimento. Choveu e a gente nem viu. Cresce agora em mim e é nossa. Penso num jardim, ele numa horta. Conto as luas. E eu vou aprendendo a ser terra na beira-mar desde o dia que entrei no novo ciclo, desde que mudei e emudeci.

*
Fez-se um novo tempo.
Estaciono e tiro as malas, as minhas e as outras. Procuro um canto para morar, sentar e escrever. Alguém já mora em mim e em meu coração já pulsa o novo.
Salvo tudo num documento escrito lápos, as novas frases depois do espaço vazio. Resisto a mais um asterisco, mas percebo que a narrativa não se resolve mais numa carta só. E já basta de histórias em círculo.