Para ler ouvindo: Santa Chuva
ÚLTIMA CARTA

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Ele,

Cansei de me desculpar e você me desculpar. Cansei de você se desculpar e eu te desculpar. Cansei de ser desculpada pelo meu temperamento e da desculpa do teu temperamento. Cansei de te amar sozinha porque eu te amaria todo dia naquelas dias de amor se soubesse amar a mim mesma; mas agora que eu sei amar sozinha, eu quero ficar me amando só.

Esqueci dos detalhes das cenas rebobinadas tantas vezes na memória que antes tudo era capaz de reconstituir. Estranho, mas eu simplesmente já não me lembro. E não gosto mais de voltar àqueles lugares todos no passado e já não gosto, principalmente, de lembrar daquele abandono.

Procurei nossas cartas antigas, mas estão todas encaixotadas. Só sobrou essa última conversa onde nos dissemos eu te amo. Pela única e última vez. Mas eu também esqueci o que diziam as cartas. Estranho, pois li tantas vezes que deveria saber de cor.

Mas digo: esqueci.
O que você disse mesmo? O que você sentiu mesmo? Quem é você mesmo?

Já não importa.

Cruel? Não nos culpo. Ou talvez culpe e essa seja a parte mais difícil. Mas é assim: difícil tanto quanto foi grande intenso muito. Não me culpe, não me desculpe, não faça nada. Eu não faço mais nada por nós, além dessa última carta. Não há nada além desse ressentimento que aos poucos vai ser diluído no caldo dos anos, nesse tempo que faz a gente esquecer cansar ir embora.
Estou indo embora da cidade e sinto também que estou indo embora de você. Senti isso num dia de mudança quando, tentando pôr minha vida naquelas caixas para a transportadora buscar, chorei alto forte com algum desespero e percebi que estava deixando a nossa história, o nosso amor urbano ali, naquela cidade que nos uniu cósmica misteriosamente, embora nunca tenha nos assistido juntos. Depois chorei de indignação com seu atrevimento em me visitar tão inoportuno em plena mudança, com tantas coisas para encaixotar. Mas logo depois, e mesmo assim ainda na mesma música, quando ouvia pela primeira vez Marcelo cantando nossa chuva, chorei percebendo que o que estava fazendo naquela manhã de terça-feira de setembro era decidir o que deixar, o que levar, o que jogar fora. E eu estava te deixando ali, de fora das caixas. Foi então que me veio o choro que eu esperava há semanas e me veio praticamente como um auto-orgasmo, como se estivesse me amando só. Choro de benção, de fim de chuva, que dissolveu rápido e certeiro como sal de frutas o sufoco sem nome que morava dentro de mim há semana.

Mas quantas vezes eu te disse adeus?
Eu sei;
mas não se engane: o adeus de agora eu te digo nesta carta que nunca será selada nem correspondida. apenas endereço...

pra que minha vida siga adiante

eu não respondo mais.