terceiro ato
Observo o pedaço final de seda sendo queimada junto com meus dedos. Percebo que a imagem está sendo finalmente reconhecida pelos meus sentidos. Parece que de repente consegui entender o cinema com olhos de câmera. Mas estou atormentada, um pouco, pelas imagens glamourizadas com as quais me educaram. Foram elas que criaram em mim este estado de tontura e profunda embriaguez. Mas já não percebo nada. Isso é bom. Esquecer de tudo, quero esquecer de tudo e voar. Lembra do tempo em que a gente voava, gente? Saíamos desvairados pelos jardins internos de quadra, dançando na madrugada, pisando em nuvens de plainas. Lembro daquelas noites como noites laranjas, com uma espécie de iluminação antiga das cidades históricas. Sabe? Como em Goiás Velho naquele festival de poesia? Naquele festival eu me senti livre, acho.
Pauso. De repente corri tanto que me cansei novamente. É definitivamente como uma maratona isso aqui. Estou tentando chegar em Luíza, mas estou correndo muito para alcançá-la. Como responder quem é Luíza Breu? Como fazer de tudo isso ficção? Ascendo um cigarro e percebo – o que já sei - que meus escritos estão viciados em serem produzidos e encenados de cigarro à mão. É o cinema!
Sinto como se estivesse morrendo. Aos poucos. Morrendo lentamente com uma sanfona ao fundo. Deixando o cigarro me autodestruir, permitindo que a fumaça entre neste dentro sufocante que é o meu ser tão.
Esta busca de deus anda me enlouquecendo. Minha alma liberta pede um deus liberto. Mas as pessoas não entendem. E vocês não estão entendendo nada, nada.
O barulho dos vizinhos! Estou há dias neste apartamento e a única coisa que vem de fora são passos do corredor. Sinto que estranham este disco tocando sem parar e esta fumaça vazando por debaixo da porta. Me sinto protegida, mesmo trancada do lado de dentro, porque sinto que as chaves vão aparecer qualquer hora dessas, como tem acontecido todos esses anos.
Preciso desses momentos para ser eu. Preciso ser eu. Ou voltar a ser eu, pois estou perdida nesses dias e horas sujas.
Não existe uma só Luíza Breu. Não foi só eu que me criei. Fui criada disso tudo. Sou criação deles também. Fui nomeada, definida, justificada, psicologizada diversas vezes por outros tantos narradores. E eu mesma me nomeei, me defini, me justifiquei, me psicologizei, entre outras coisas, centenas de vezes.
Preciso voltar a voar, alto, forte, veloz, eu vôo. Eu vou, mesmo sem me libertar, eu vou. O dia 4 vai chegar e eu vou precisar ir. Então, posso morrer um pouco até lá?
Posso, eu deixo.
Me deixo por alguns instantes.
No que pensar?
Não estou triste. Apenas estou. Inteiramente aqui, apenas estou.
Vou até a janela onde permaneço por bons minutos. Me debruço na janela e a luz forte do sol perto do cair da tarde me acalma.
Vou fazer uma vitamina porque não quero morrer. Depois de horas seguidas ouvindo Marcelo o barulho do liquidificador me enlouquece.
Depois de um longo corte que demonstra a passagem do tempo, uma meia hora talvez, vou ao quarto e escrevo um trecho de Liberdade na parede. Penso que o quarto virou cenário ou locação e já não consigo habitá-lo. Pensando melhor, vejo que de repente todo esse lugar, a ainda casa, virou um palco. Acendo um cigarro com alguma desenvoltura, melhor que as tentativas anteriores. Já consigo suportar mais sua fumaça e sinto que estou voltando a fumar. Isso lá é bom, pergunta Marcelo. Não sei, digo levantando e batendo as cinzas no cinzeiro de flor. Volto a ser fumante por alguns instantes, mas meu corpo dá sinais de cansaço novamente. Apago o cigarro em seu início e deixo ao lado de outro quase inteiro. Preciso parar um pouco para recupera o fôlego e decido tomar água. Sinto que minha narrativa vai se cansando, como meu corpo. Tento materializar meu corpo na narrativa e me repartir nesta transposição começa a ficar doloroso. Enlouqueço.