Tento ser livre. Não digo que sou, mas digo que tento. Tento ser livre. Todo dia. Sem psicologismos, mas a liberdade parece ser um estado total de distensão de músculo que beira a um estado de orgasmo. Orgasmos, agora sei deles. Mas, enfim, dizia que tento ser livre, mas acabei de ascender um cigarro depois de vários dias sem ele. A puxada é desgastante, mas me devolve ar. Fôlego demais também não está funcionando. Desculpe, mas não está resolvendo. Não o toco. Um pouco de chá gelado, seria bom, então preciso me dirigir a cozinha. O chá é muito bom. Acabo de decidir que ficarei em casa a segunda inteirinha ouvindo o mesmo disco e bebendo chá verde gelado sabor abacaxi. E fumando um trago por cigarro. E produzindo, expulsando de mim tudo que preciso escrever este último mês nesse lugar que ainda toma pra si o nome de casa. Choro, mas não é dramático, porque é um choro agradecido. É um choro de poesia. Marcelo canta liberdade. Ele fez pra mim. E tive certeza na hora em que me senti muito emocionada com ela. Porque Marcelo soube de mim esses anos todos. E pensei ele ainda sabe, quando ouvi a canção. São dois tragos. Dois tragos por cigarro. Apago o cigarro quando estava já quase no filtro. Preciso diminuir a quantidade de quase todas as coisas. E engordar essas linhas. Preciso. Esta conjugação tem sido repetida diversas vezes e é o retrato de uma mente neurótica. Adquirida. Navegar é preciso, viver não é preciso. Tive que colocar esta frase aqui pra dar sentido ao fato de ela estar escrita na parede.
Essas últimas frases são histéricas. E eu sou feminista, não admito ser histérica. Levanto e escrevo algumas lembranças do livro de memórias que estou fazendo para um vibrador. Escrevo vibrador e acho interessantíssimo o fato do microsoft word grifar a palavra vibrador. Ele aponta que esta palavra está incorreta e dá outras sugestões: vibra dor, vibrado, vibrados, virador. Mas digo, o livro é sobre quem é vibrado e não o que vibra dor. Mas eu estou me desviando do meu tema, da minha frase de efeito. Preciso voltar pra sensação que tive quando pela primeira vez disse, pensei, senti tento ser livre, todo dia. Ele diz que tudo passa. Será que nunca mais sentirei aquele sopro de liberdade outra vez? Porque estou atrás dele, desesperadamente. Ele me escapuliu tal qual um sabão e estou desconcertada, escorregando, esperando meu corpo cair. Vira dor.
Meu corpo está pesado, mas quero continuar tentado restabelecer essa liberdade tentando enfiar na minha cabeça que não comer, não fumar, não produzir, não ler é necessidade e condição para minha liberdade, ao mesmo tempo que eu me autodestruo me privando de todos os meus vícios. Ora, porra, eu adoro meus vícios. Vou digitando compulsivamente entrando num momento epifânico. Eu provavelmente gritaria esse texto. Tomei todos os vidrinhos de vício que tinham aqui em casa. E tenho comprado novos todos os dias. Meu corpo está pesado, cheio de vícios novamente e ainda não reencontrei a sensação de liberdade. Me sinto completamente desesperada. Um desesperar de alma e um enorme agravamento de meu estado com essas palavras. Ao mesmo tempo é, interrompo o pensamento e vou pegar outro cigarro. Pego uma água velha num garrafa com menos da metade cheia. Pauso longamente a minha mente com os olhos fechados. Sinto meu corpo agredido. Apago o cigarro no início. É assim que é bom parar com um vício. O vício é a prisão, fica claro. Mas eu dizia que é assim que é bom parar com um vício, digito enquanto falo o que digito. É assim que é bom parar com um vicio, quando a vontade cessa. Quando não se aguenta mais aquele vício.
Lembro do vício que abandonei neste ano oito que finda de fato finalizando tantas coisas. Poxa, tem um vício que superei. Tá tudo bem, não te desespera. Alguém por favor me diz que tudo bem? Que saudade da minha mãe. Depois de quase um ano morando só, sem nenhuma solidão no currículo, choro desejando a minha mãe do meu lado dizendo o que ela sempre diz e com o melhor abraço do mundo. Precisei desse desespero pra sentir falta da minha mãe.
Preciso um pouco da minha varanda. Levanto ao som de fim de tarde, mais tarde.
Preciso um pouco da minha varanda. Levanto ao som de fim de tarde, mais tarde.
Não demoro. Muitas coisas se passam com a música de Marcelo, o som da cidade, a paisagem do fim de uma asa e os pensamentos todos juntos trazendo muitas e desordenadas frases. É tão grave que não consigo me sustentar em pé por muitos segundos. Sinto um estado de entorpecimento nos meus olhos quando sento. Luiza Breu me olha da bancada, onde espera na fila para nascer com seu nome escrito num post-it. Mas eu dizia de um vício curado, ou uma saída da prisão. Era um alguém que me prendia. E consegui sair, assim com muita tranquilidade e segurança, porque estava ... caberá ao nosso amor o eterno não dá, catarolo... enfim, por sentir vontade, eu saí desse lugar que construi com o alguém Porque os laços são construções atadas em nó, que tomam espaço na vida da gente. Um espaço que muitas vezes precisamos abandonar compulsoriamente para conseguir realmente abandonar. Sorrio e penso que minha mãe adoraria esta frase de efeito. Logo depois penso o quanto em mim tem ela. Quando se abandona o espaço como este, continuo, ... é difícil continuar. A sensação me escapole. O telefone toca. só atendo quando terminei a frase. Era minha irmã e volto com algum cansaço. Me sinto muito cansada do desespero. Olho pra essas palavras sem ler nenhuma delas. Estou no bloco de notas porque o microsoft word está dando erro. Será que eles querem roubar meu texto? Penso que a paisagem de palavras no bloco de notas neste momento é um belo chapadão. Tentem o prazer dessa imagem em casa, crianças. Estou falando com alguém? Estou falando com vocês? Estou falando comigo? Estou? Marcelo você pode me ouvir? Tudo p a a s a a a a. Ele responde que sim. Olho para Caetano estampado na capa do disco. Sinto bater uma onda reminiscente da vibração da madrugada anterior. Desisto daquela paquera pálida. Acabo de desistir. Preciso de chá.
Espero vir uma música mais calma para que eu possa unir novamente os cacos otrora dispersos. Mas a dispersão faz parte do minha tentativa de ser liberta. De não ser escrava de mim mesma. Ou será de não ser escrava do que eu acreditei ser, de ser escrava de tudo que me fizeram acreditar, de ser escrava das performances que eu consegui e das performances que eu não consegui executar? É tudo. Por isso é muito grande: eu quis dizer que era livre, pois assim eu me sentia naquele abril ou teria sido março, não, foi abril. Eu quis dizer que era livre, mas é muita coisa ser completamente livre. E eu não tenho essa liberdade de dizer que sou livre. Reacendo o novo cigarro antes apagado. Uma nova onda de cansaço me sopra e perco o folêgo das linhas anteriores. Será? Apago novamente como mais uma tentativa de encontrar uma sensação de liberdade anterior. Preciso levantar um pouco, então, respiro fundo. Levanto sem saber em que canto da casa repousar um pouco. Ponho novamente a música e observo a bagunça segundafeiristica. é ótimo estar no bloco de notas, penso, é como se tudo fosse escrito a lápis. Deito no chão como fiz tantas vezes naquele fim de semana que já era passado, mas ainda estava presente, sobretudo na sujeira das coisas. Me contorço, com algum desespero, mas não consigo chorar. Me pergunto algo sobre a seca. Mas a agonia que eu sinto permanece. Uma agonia seca. Preciso chorar. Preciso e não consigo. O não conseguir com a precisão de uma agulhada. Penso em socorro.
Com alguma auto-violencia consigo materializar algum líquido nos olhos. Mas é um choro de poesia que quer vir. E eu não entendo.
Eu não entendo.
Esse sempre foi o maior drama. Pego uma foto no quadro. Estou numa praia. Linda e completamente infeliz por me sentir gorda, feia e acabada. Ou seja: asujeitada, mas linda. De repente ao olhar a foto de longe, de volta ao quadro, eu, sozinha, numa faixa de papel com um pouco de mar até os tornozelos e um bom pedaço de céu na minha cabeça... eu era feliz naquele segundo de sorriso e disparo? Ou era mais um tiro forjado no sorriso engarrafado? paro um pouco e penso. a música me desperta e paro de pensar. Percebo que o computador está sujo, mas não me movo. Vou me divertir um pouco na casa. Busco algumas floreszinhas de crochê para inventar um penteado. Não as encontro. Piso irritada no chão todo sujo de farelo de biscoito e penso como eu vou fazer uma mudança se não sei onde estão as coisas. A transportadora quer que eu faça uma lista dando valor ao meus bens. Tarefa impossível. Não há bens, há uma coisa só e ela só tem valor toda junta, reunida nesta disposição neste lugar que chamo, ainda, de casa. Quando isso que eu chamo de casa for esquartejada e enterrada em caixas de papelão cor de terra seca quem serei eu? Como serei eu fora deste lugar, indaga minha ansiedade dolorida. Pois neste lugar já me encontrei e foi aqui que me senti livre aquele dia de abril que escrevi tento ser livre, todo dia. Fecho os olhos e peço, como oração, que esse sentimento volte. Abri os olhos, mas repeti novamente o gesto agora mais séria, ereta, no chão da sala, com um violão em meus ouvidos.
Depois de uma longa introdução, penso que é a última segunda nesse apartamento. Escorrego e deito no chão novamente. Ensaio um choro de atriz de quinta, mas ele não vem. Ascendo mais um cigarro e mal suporto o primeiro trago. Meu cansaço volta. Tinha tido uma intuição que penso que me ajudaria, mas me enfraqueci e ela se foi. Tento recuperar minhas forças para recuperar a intuição. Ligo para minha menina e peço um abraço. Choro como se me derramasse enquanto falo. Me fortalece bastante. Quero careço preciso me derramar.
Respiro longamente dessa vez depois de alguns minutos de um choro livre. Chá. Preciso ser livre, me digo. Tento ser, mas nem sempre consigo. A intuição era que talvez eu não alcance mais a liberdade daquele abriu. Os momentos de liberdade são inéditos como os pratos da minha culinária. É impossível repeti-los, pois já não se sabe a receita, ou melhor, não há receita, as medidas são espontâneas e os ingredientes variam de acordo com a validade. E a data de fabricação daquela liberdade ficou no mês quatro e já utrapassamos, penosamente, a linha do mês oito do oito. Chegamos ao nove e nove tem cara de final. E é, de fato. Por isso a recuperação é precisa. Mas estou muito cansada, muito cansada. Tenho me aplicado auto-psicologismos baratos para me salvar. Estou em ânsias. De repente um fino gosto do orgasmo da noite anterior me toma. E é estranho. Miro novamente o chapadão de palavras sem ler. Me espreguiço em voz alta e meus músculos me dizem que estão cansados, respondendo a minha pergunta se um banho ajudaria. A sujeira do meu corpo me mantém inerte, mas viva. Ligo para o tatuador para marcar uma hora. Preciso com urgência fazer uma intervenção no meu corpo. Leio esta frase comunicado novamente e penso que ela serviria mais a uma agenda do que a nós, aqui. Penso novamente no tema recorrente do narcisismo e da necessidade toda de exterminá-lo. Ao mesmo tempo entendo que este aqui é um canto de narciso. Penso no ano em que estamos. Penso o tempo todo no ano que estamos. Me vejo caminhando nas ruas da década, com vinteequatroanos na mochila, avistando um final. Na verdade na caminhada penso que estou avistando portais. Isso, portais para outras dimensões. Como sinto falta de assistir a essas imagens sem a fumaça de um cigarro. Ascendo um cigarro.
Depois de uma tragada leve, deixo repousado no cinzeiro de flor. Penso que vou conseguir, mas meu corpo ainda se cansa. Ouço a marchinha, quieta e acho graça. Consigo dar mais algumas tragadas. Vou ao sanitário e expulso mais alguma coisa de mim. O líquido vermelho continua a escorrer, aumentando cada vez mais seu fluxo. Olho as minhas várias versões no quadro de fotos. Qual a utilidade de um quadro de fotos? Fico por alguns minutos me lendo nas imagens do quadro. Penso que este fim de década é ainda do indivíduo. Estamos detonando os grupos. Penso, de repente, em mim abandonando o meu grupo. O meu grande setor que é essa cidade. Me vejo abandonando um pouco de mim. Olho novamente o quadro de fotos, abandonando os vários eus dos retratos. Algo me diz que elas não querem me abandonar. Será que gostaram de quem elas se tornaram? Será que querem abandonar este corpo e voltar a serem elas? Será que ainda querem ser outra pessoa que não elas? Será que alguma delas queria ser eu?
O alguém volta novamente a minha memória. Tudo isso porque ouço essa música do disco que tem a nossa cara. Talvez nossa última música, nossa última cara no retrato. Caberá ao nosso amor o eterno não dá, cantarolo. A música termina enquanto penso nessas palavras e de repente ele foge novamente da lembrança. É um retrato do fim de uma prisão. Acho bom e cantarolo alguma coisa da música posterior, com alguma serenidade.
Será que já posso parar?