M a r i n h e i r o s ó


Para os marinheiros todos, este em especial.


O que chegou junto com as palavras claras como se ditadas por alguém visível, tangível, solto dentro de casa, foi um cheiro a princípio sem nome. Um cheiro grosso, nem bom nem mau, um cheiro vivo de coisa em constante movimento, um cheiro vivo de coisa grande cheia de miúdas infinidades de outras coisas também vivas dentro dela. Custei a reconhecê-lo, há muito tempo não o vejo, e é mais difícil talvez identificar um cheiro ou um gosto de algo distante do que uma imagem. Não havia imagem. Era como o vento. Ardia na pele, feito tivesse sal. Tinha sal, esse vento que não era vento. Era um cheiro de mar, reconheci por fim.

[Caio Fernando Abreu em "O Marinheiro"]


14 dias antes

Março também vai passar, esta era a certeza equivocada. Decidi ir à praia naquela noite e melhor que fosse só, se a ninguém interessasse esticar o verão. Levaria trocados e chinelos calçada afora, mas por nada perderia a voz da doce bárbara, ecoando no porto da barra.
As irmãs se juntaram a mim, mesmo eu dizendo que sabia ser só. E, alegres em sermos nós, unidas outra vez, nos juntamos à multidão de não-identificados, na geral de show gratuito de praia.
Meu nome é Gal, ela começou lá do alto mar, enquanto eu, lá da praia, procurava ouvir os gritos que já não se ouvem. Ameacei me jogar, em meio aos avisos dos preocupados com a maré.
Um medo inaceitável surgiu com a lembrança do quase-afogamento daquela quinta-feira de carnaval. Lembrava do sufoco de estar no redemoinho de ondas sem conseguir voltar. Sabia que não podia subestimar o perigoso magnetismo daquele chão. Entretanto, com a inquietação há muito consciente daquela em-si-mesmação covarde e com a vontade já irreprimível de me juntar ao cardume, me atirei na água, para pegar os acordes daquele velho navio.
Era por Paco, peixe e cigano como eu, que me deixara alguns dias antes e ficava mais velho no dia anterior, mas era, sobretudo, por mim, pela parte que sabia de si, que nadei até o barco e me juntei aos bárbaros.
Quarenta anos depois, lá estava eu, entre os que não tinham tempo de temer a morte, vivendo em coro os hinos da outra geração. Geração que me chamou de volta, que me afiliou.
Cantei, grave e só, à minha honey baby.
Do cais do porto, dentro d’água, ao olhar as luzes da ilha, lá de longe, com a cidade em minhas costas, dei adeus à grande obsessão. Virei as páginas de fevereiro e esqueci os reencontros de folhetim. Chega de saudade. Chega de saudade. Chega.
Nada era maior e melhor que aquela força estranha da velha cidade me acolhendo de volta. Estava ali retornando a minha terra, que me recebia pelo porto, me conduzia pelas ondas e levava embora o meu cansaço. Meus olhos, afagados pelo sal, emudeciam meu canto para que pudesse reconhecer, através deles, a certeza que nascia diante da brisa mágica da beira-mar: minha voz estava ancorada naquele porto.
De volta às areias e ladeiras, comigo, a distração dos que vivem soltos, a dispersão do vai-e-vem. No caminho de casa, notei nos dedos que Iemanjá levara meu anel em troca. Nada mais justo.


7 dias antes

A maga diz que algo lhe diz.
Eu digo: teses pálidas de vida.


1º em 2

Era o último dia de verão na velha cidade. A cidade que passa o ano esperando pela nudez do calor acima dos trinta e aguardando um novo momento de paixão ensolarada. Depois das teses impressas, não havia destino melhor que a rua. O lado de fora, os pés descalços na areia. O sin-balanço da última embriaguez do fim de estação.
Encontrei Clarice no primeiro tempo, na sala preta, por grata surpresa, apesar de ir de encontro ao esperado relaxamento dos olhos e da mente castigados por madrugadas de revisões em 180º, pelo frenesi dos viciados em trabalho. Os últimos sete longos dias de academicismo nas próprias letras, de cortes e acréscimos braçais no próprio corpo, de autismo poucas vezes interrompido pelos cigarrinhos de intervalo, fervilhavam-me ainda na cadeira da sala de espetáculo.
Mas quase no final, Clarice gritou
Avidaé-um---------------------------------soco no estômago.
A narradora disse soco no estômago, assim, de um modo exato.
Só isso freou o trânsito entre a babel de vozes que me acompanhava, há dois anos, nas tormentas dos loucos, dos gigolôs da arte, dos que só olham, só comem a fome, só, vivem ilhados na verborragia de ecos e cacos.
Meus olhos foram tomados de líquido por todos os lados. Sem nenhuma nitidez, com a visão mareada, concordei, muda, com o corpo dando sinais involuntários de vida, de distensão de músculos, de silêncio para ouvir.
Ali começara o primeiro tempo de ebriedade, que deu lugar a um novo apenas quando coloquei novamente os pés nas areias do porto e comecei efetivamente a me balançar de outro modo, com uma cadência de riso, de melodia, mas com os mesmos olhos nitidamente ébrios. Foi nesta hora de brisa, possivelmente em câmera lenta, que, ao olhar para trás, meus olhos tropeçaram nos olhos do Outro.
A lentidão, entretanto, que fazia dos meus olhos só sossego e descanso, não me permitiu outro gesto senão dar as costas e retornar ao vento de maresia. Mas o outro estava andando e, por isso, veio até mim e perguntou se era urucum parte das linhas vermelhas que avistou nos meus ombros. Era a frase mais imprevisível que chegara aos meus ouvidos naquele novo tempo e não hesitei, nem por um milésimo de segundo, em dizer em voz alta e bêbada o que de fato era. Não me lembro de nada que disse, só sei que foi com gestos largos e palavras organizadas ao acaso. Lembro também que ele riu, diversas vezes, o que revelou belas linhas por detrás de fios e pelos castanhos. Foi aí que parei e roubei-lhe um beijo.
Já não me lembro dos números nem dos segundos exatos, só sei dizer que, dado o ponto de partida, ele me sentou na areia, me enrolou nos seus braços e me calou as teorias e os psicologismos todos. Depois perguntou subitamente se eu era de peixes, sorrindo ainda mais ao ouvir a confirmação e ao dizer que também era.
Me levou pela mão areia afora, para cantos de outro mapa. No mais escuro deles, me pediu secretamente que acarinhasse sua solidão de peixe de cardume. Reconheci ali um Marinheiro e nele, a minha mesma solidão de nômade.
Levei-o para o meu canto, no quadrado recém-habitado, a partir de então tomado efetivamente como casa. Foi lá que provei do seu sorriso raro de caninos afiados, emoldurado pela barba espessa, dos olhos de menino que era, das mãos delicadamente firmes do norte e onde, principalmente, me embriaguei da sua leveza de andarilho, de quem não se fixa.
Ele provou que nascera no dia seguinte ao meu, dois anos depois, e se despiu do anonimato da rua, mudando o tom para uma voz desarmadamente tímida. Entrelacei suas pinturas aos meus riscos de pele, enquanto amanhecíamos com sussurros, murmúrios e líquidos o outro, que era ainda o mesmo dia.
No silêncio que antecedia o primeiro sono, sem olhar nos olhos, mas com a voz bem perto dos meus ouvidos, perguntou “por que você tá só?”. Disse que todo mundo tinha viajado e por isso os quartos vazios. Mas ele insistiu: “não. por que você tá sozinha?”. Sorri, mas não lembro o que disse. Só sei que não respondi.




Bom dia
Repetido várias vezes em sorrisos, agudos e afagos.

O trânsito contorna a nossa cama, mas daqui ninguém sai.
Decretou-se feriado nacional e eu quis dizer:
faz do meu corpo a tua morada.



Boa noite
Várias em uma só.

Amanheço com a madrugada para ver novamente seu rosto iluminado pelo filete de sol vindo da janela. É dia, mas aqui dentro os ponteiros ainda se espreguiçam. Vivo da poesia dos meus dedos entre seus fios, da minha mão descendo pela sua pele, do beijo e do cheiro para voltar a dormir, mais uma vez, com violões ecoando pelas paredes nuas.
A tua presença entra pelos sete buracos da minha cabeça.
Não durmo.
Sonho reescrevendo o que já está impresso.
Fico acorda.
Gravo tuas linhas para ler na partida.



Sem adeus e lenços ao vento.
Ele foi e eu vôo pra longe.
De volta à superfície,
o soco de realidade.



Vamos viver, os grilos pintam e daí?

Uma semana

Eu não sou daqui também, Marinheiro.
Estou na mesma busca suicida pelo que não é, pelo impossível, pelo mundo dos sonhos extraviados.
Eu não tenho amor e aporto nesta baía, como tantos outros, para desbravar o continente, o velho novo mundo. Para encontrar, antes de novas partidas, a mim mesma nas cicatrizes desta terra. Do mar, levo o infinito do horizonte, o que avisto desta janela.
Não volto à mesma estação. Quero a preguiça de quem fica.
Não quero o vagão de novo, a jornada que nunca chega a lugar algum, as tempestades intermináveis sem a bonança do tato. Quero a distração durável, o toque do alcance, a temporada de colheita.
Trago teu talismã, com a esperança de bons ventos, mas volta e meia desacredito dos amuletos e os encaro como pedras, olhos de boi estupidamente arrancados pelos que querem prova, posse, sangue. Já tirei o sal e sigo na cadência de bênção do novo tempo por ti inaugurado.
Eu não te espero, Marinheiro, porque tu não volta nem eu fico.
Não me atrevo a pôr uma pedra no leito do teu rio nem é possível parar minhas ondas nesta maré. Sou só e meus encontros foram sempre despedida.
Portanto, se foi por falta de adeus, tchau.
Esquecerei teus traços perdida na multidão de outros.

Abril

As frases voltam, aos poucos, na lembrança estilhaçada.
Junto os cacos para um mosaico.

Três

Grávida de fluidos, inundada de fluxos.

Cinco

Preciso não dormir.

720 horas depois

Abril pra fechar.
Volto, encosto a porta e abro a janela para a brisa. O tempo está parcialmente nublado, mas a poeira do vento inundou toda a embarcação. Volto às páginas deste diário de bordo para examinar a epiderme.
Os sinais não são exatos. Cartões postais sem letra e imagem, folhas em branco, gestos abafados pelos temporais de silêncio. Noto e registro alguma esquizofrenia nos ponteiros da bússola. A carta indica mais uma trilha dos enforcados.
Desvio.
Navegar é preciso.
Lancei ao mar algumas palavras e jogo o último nome na lista de personagens. Mas não pesquiso mais base de dados. Aparei as arestas. Continuo apenas com estas quatro.
Este barco continua sabe-se lá até quantas linhas. E leva este canto pelo avesso, que só principia no final e, por enquanto, só se entende só. Quando nada mais couber nesta panela, chega.