Sempre virá. A solidão não existe. Nem o amor. Nem o nojo. Odeio quando te enganas assim, girando entre as panelas. A vida é agora, aprende. Ainda outra vez tocarão teus seios, lamberão teus pêlos, provarão teus gostos. E outra mais, outra vez ainda. Até esqueceres faces, nomes, cheiros. Serão tantos. (...)
Tenho medo de continuar. E não suportaria parar, ondas de Iemanjá.
Caio Fernando Abreu em Dodecaedro


Começo da noite: eu disse à 4ª pessoa, citando Rosa: o que a vida quer da gente é coragem. Mas ela foi embora antes, e perdera o mais grandioso dos momentos.
Começo do dia, fim da odisséia, só as 3 agora: tá vendo, Doralice, a vida só se dá pra quem se deu; pra quem se deu no início, sem pedir nada em troca; nada além do que o universo ofereça, no horário que for, mesmo que haja aula, trabalho ou faltas demais no sábado de manhã.
Foi a mesma conclusão da semana que antecedia o carnaval. E me lembrei da primeira noite de Paco na velha cidade. Depois de uma longa seca e outonos invernos e meses de abstinência de seu passo, eu disse, de manhã, com a cara de ontem: viver é melhor que sonhar; viver é melhor que lembrar, Paco.
Saímos do inferninho com o dia claro de verão e não hesitamos em nos jogar no mar, de jeans e tudo, embora tenhamos trazido mais areia do que lavado a alma suja de madrugadas de esperas e saudades.
O que mais nos intrigou, no entanto, foi o cheiro de lavanda que nos invadiu. Lembro, como se pudesse sentir aquilo tudo de odores, cores e sons, quando nos aproximamos da beira, para primeiro molharmos os pés, naquele espetáculo imenso de pedras, ondas de alto diâmetro e pouca faixa de areia. Respirei um cheiro forte de alfazema, o mesmo das oferendas de Janaína no dois de fevereiro. Inspirei de novo. Novamente o mesmo cheiro. Olhei pra Paco com os olhos arreganhados de crença e dúvida e, antes que dissesse qualquer coisa, Paco me perguntou se eu também sentia aquele cheiro forte que nos invadia. Com a confirmação um do outro, outra presença se fez entre nós.
Foi o primeiro dos muitos dias de mágica.
E foi ali, no buraco do Rio Vermelho, que começamos a entender, através dos sentidos, a força estranha da terra de todos os santos.

*

Fui catar pedras naquele sol inacreditável nas primeiras horas de dia claro, depois de o dia anterior ter desabado em tempestade que impediu os mais prudentes a não arriscar nada naquela sexta-feira. Era uma linda manhã que se formava enquanto nós dois e toda a trupe ibérica passávamos a chuva grossa no calor suado de mais um inferninho. Catei as pedras nas poças de água da maré incrivelmente baixa para um mar de ressaca. Avistei uma pedra grande, dessas que guardariam boas recordações numa prateleira. Duvidei que estivesse solta, mas estava. Sei que, sem muito pensar, virei de costas e, vendo Antonio sentado abraçado aos joelhos em cima de uma pedra, disse “magma”. Mostrei a ele, em uma das mãos, vermelha e molhada, aquilo que era como um presente, qualquer coisa como uma oferenda. Afirmei, sem nem saber se era geograficamente correto fazê-lo, isso era magma, era vulcão. Olha, antes, não seria capaz de segurar assim, sem me queimar. E agora é frio, é sólido e, ó, era parte dessas pedras grandes e agora é só um pedaço. Foi a chuva que partiu essas rochas que trago nas mãos, os dias de tempestades de ondas e caldos que soltaram esses pedaços, pensei e não disse, já que nem tudo acompanhava a cena pela oralidade. O gesto já era por si só carregado de sentido. Mas disse, toma essa pedra, a maior delas, leva contigo como um pedaço de lembrança sólida deste alvorecer. Toma essa manhã que lhe enviaram, esse pedaço que a terra te cedeu. Eu coloquei a pedra na mão de Antonio e disse: era assim que teu povo devia ter aportado nesta terra: sabendo pegar só o que ela oferecesse. Antonio me olhou com seus ardentes olhos de mel e, naquele sorriso doce de quem estava em trânsito, de quem partiria a algumas horas dali, me disse, o que tomei como sincero pela solidez daquilo que ele guardava em um dos bolsos, que nunca se olvidaria daquele instante.
Eu nada pedi, nem roubei.

**

Os estrangeiros brincavam de circo na praia do buraco. Eu, nativa, andava em direção ao ponto da praia onde quase morri naquela quinta-feira de carnaval. Quanto mais me aproximava, mais forte as ondas me buscavam na beira, como se tivessem ímãs as minhas pernas.

***

Olhamos por muitos minutos o espetáculo das ondas. Olhamos em silêncio, por muitos minutos. Era bom o silêncio para observar aquilo. Não precisava de palavras para entender porque não era algo que se entendesse: só os olhos eram capazes do prazer estético de assistir a particularidade de cada uma daquelas ondas quebrando no mar. Aquilo não se traduzia, não se fixava em idiomas.
Rúlio quebrou o silêncio me dizendo que queria um barco para sair navegando. Como um Marinheiro, perguntei com auto-ironia. Si. Tem que ter coragem pra furar essas ondas e alcançar o alto mar, né? Rúlio respondeu que exatamente essa era a graciosidade de se navegar; e era meio como o ciclo da vida, o redemoinho das horas. Como os surfistas são corajosos, disse rindo, já com a cuca encaracolada na onda; já longe, talvez numa ilha. Mas eu queria era estar todo cercado de mar, ele disse. É, afinal, os surfistas sempre voltam pra terra, e estão com o pé amarrado numa cordinha, complementei a fala. Eu queria um barco, Rúlio disse, e queria só ver mar na minha frente.
Voltamos ao silêncio.

****

Lembrei que ela havia me dito que era melhor assim, que era melhor não dizer adeus. Despedidas são doloridas, ela disse e eu não esqueci. Era melhor não cometê-las.
Chegada a hora, já com o sol a pino, recusei-me a rabiscar endereço, a gravar números, sem nem saber quão dolorosa seria, horas depois, aquela perda de terra firme, a impossibilidade para sempre de retorno, de cruzar nossas rotas no mapa. Nunca mais veria aqueles olhos de sal, esses olhos de mel. Mas Antonio levara na pedra, a maior delas, a miudeza de minhas palavras e a imensidão daqueles minutos mágicos que só a nós foi dado. Eu levaria apenas, ou melhor, tudo aquilo que se resumiu aos fios laranja, ressaltados pelo sol na barba negra que roçava em meu verso, enquanto dormia no trajeto de despedida. Foi só a metáfora daquele instante que levei comigo. Aquilo e um gosto amargo da madrugada-dia. O gosto de quem chegou tarde. O navio de Antonio partiu logo, horas depois.

*****

De volta ao quarto, quando incrível e ocultamente a chuva já molhava a janela, ainda na mesma manhã, como se o sol tivesse sido secretamente só para nós, Doralice me perguntou por que sempre tinha que acabar. Eu disse que não sabia, mas era bom o que já havia sido, ainda que eu mesma tentasse me dissuadir daquele gosto de fim, dissolvendo em outras doses a sede que Antonio deixara em mim. Depois de todas as pedras distribuídas, me restaram duas. Escolhi a mais bonita delas e dei a Doralice.
Dois dias depois, rumamos, novamente com a 4ª e agora mais a 5ª pessoa, para o centro histórico da cidade. Caímos numa praça, num bairro chamado de Santo Antonio e cosmicamente tudo recomeçou no semblante de riso de novos marinheiros a nos apontarem o mar de estaleiros na escadaria da cidade alta. Doralice, eu bem que te disse.
Mas não espere nada, Doralice. Isso lá é tolice.