Carta XXI - O Mundo

Tempo, tempo, tempo, tempo
Entro num acordo contigo
(“Oração ao Tempo” - Caetano Veloso)


Recolhi o jornal espalhado no chão da sala de estar. Devolvi a louça à cozinha e sentei-me para escrever a primeira das vinte e duas cartas. Senti um enorme contentamento em ver, na volta, o branco da página sem pedaços de rascunho a serem amarrados. Tenho aqui a verdadeira liberdade do novo: o título do símbolo, uma epígrafe e a página em branco, que me esperam apenas há alguns minutos no documento recém-salvo, mas que simbolizam uma espera muito maior. Foi esse mesmo sentimento que tive quando, nesta última manhã, acordei afoita para um intervalo de água e me deparei, ainda sonâmbula, com o chão do quarto-sala iluminado por um amarelo firme e convicto. Meu peito se encheu de alegria com a volta do sol. E, mais ainda, com a paisagem daquele antigo quarto, nunca habitado propriamente, transformado no meu canto, limpo como esta página, mas já com a minha presença ancorada.
No dia anterior preparei-o para receber visitas e finalmente tirei do armário um pôster que comprei no museu, separado especialmente para quando alugasse meu apartamento próprio. Foi um dia em que acordei decidida a fazer as pazes com a outra e ela me deu bom-dia com aquele sorriso velho das tempestades. Chorei um pouco quando senti as feridas secas, magoadas novamente nos membros amputados, mas não desisti. Pus música e cantei alto, arrumando o quarto de dormir e o quarto de acordar, peguei o durex e preguei Tarsila na parede. Brazil. Body & Soul, é o que tem escrito.
Não trouxe tudo. Algumas partes de mim mofam ainda, enterradas no depósito, entre lonas e ratos, à espera de mudança. Mas é com este gosto de palco nu, de pano de fundo, que, enfim, começo. Aproveitei a estiagem e comprei uma tela, uma caixinha de tintas guache, dois pincéis, massa de modelar e um baralho. Já estou preparada pra quando a chuva chegar novamente. Já vai encontrar sementes e a terra preparo aqui, agora, para o novo jardim.
A parede do outro lado, oposto ao cantinho do cruzamento de rodapé de onde escrevo, é verde. Um verde bonito de tinta fresca e percebo agora como encontro finalmente o doce do cenário de cores desta nova casa. Respiro o ar ventilado dos espaços vazios desta sala-ateliê, sorrio e canto como Bahia. Tenho fôlego de sobra para mais de vinte e um dias.
Pensei, hoje, enquanto caminhava agradecida nos primeiros minutos da noite na beira-mar que me cerca, no quanto tenho dado novos tempos pras coisas. Me dou mais de um, dois ou, quem sabe, três anos pra conseguir sair da Casa da Mãe, dessa vez caminhando com as próprias pernas, e talvez mais de seis meses para conseguir um emprego de quatro dígitos. Na verdade, nem penso em números exatos, só nos plurais: anos, meses, dígitos. Não acredito mais é no imediato, no instantâneo, no agora. Do agora quero apenas a brisa, o prazer de andar, o passo compassado ao ritmo do tempo. Pois só agora sinto a felicidade do ponto final de outrora, do ciclo fechado, da conclusão do caminho iniciado pelo Louco.

Vejo aqui nesta sala os primeiros galhos do broto que germina em equilíbrio com a Mãe, com a Terra. Enfim sinto e vivo a chegada do esperado. É aqui o lugar seguro que busquei para criar asas. Asas, no plural, pois uma delas já desenhei antes de abandonar a maquete. Chegou ao fim, portanto, aquele ciclo de observação do outro lado, do interior, do centro do território, do eu-lírico dramático. Descobri uma fonte nova e própria de ar e de cor. Quero agora a outra parte, para o esqueleto do que será inteiro só depois de muitos anos, meses e dígitos lá no final da última história. Vou desenhando, esboçando, procurando novas imagens, traços, tons, com meus pés novamente descalços no útero de minha Terra. Arriei guardas malas arquivos e fico. Encontro paz com a outra, com o chão, com o espaço, com a mãe. Fizemos as pazes em silêncio. Arrumo, agora, o palco para os novos cachos e deixo a menina dançar, sem cessar.
O movimento é o gerador elétrico do novo canto.

Reatualizo as energias do contato com a magia deste Cosmos.
Transcrevo esta carta com o que escuto do universo, que aprendo, bem devagar, a ouvir.
Neste ritual, emudeço para ouvir os cânticos, para tocar os búzios. Saio das quatro paredes deste birô de palavras e me lanço na janela, de braços abertos, para o novo velho Mundo.
Danço com ele.

Deslizamo-nos, como um só, em barras de rolagem.