II

Um bebê tinha nascido depois que partiu, foi a única notícia que teve antes de entrar num significativo espaço de tempo incomunicável. E isso a fazia pensar que o crescimento dessa criança seria para sempre a medida do tempo da partida. Ela ficou por muito tempo como se não escutasse ninguém, como se não falasse, como um grande silêncio depois da verborragia do último tempo. Breu estava sozinha, reconheceu depois. E sozinha como nunca esteve, pois aquela solidão era proporcional à lonjura que estava das fronteiras de seu país, era quase uma solidão linguística, para não falar de afetos, ao passo que seu único exercício era caminhar e ser uma na multidão daquela legião estrangeira.
Enviaria, naquela temporada, envelopes apenas com folhas secas de outono, ouviria apenas canções de exílio, procuraria bancos públicos para sentar e observar. Os olhos de Breu eram atentos, muito negros e procuravam os tais objetos voadores no céu. Até que, primeiro de tudo, começou a repetir uma mesma cena e instaurar uma rotina. Era uma espécie de plano sequência que iniciava com o movimento circular de dedos no iradinho, para a trilha sonora de fones de ouvido, depois o ritual de luvas e mãos no bolso, para acionar a porta giratória e começar o dia de cada vez.
Os dias mais difíceis eram aqueles que precisava aprender alguma coisa e foram os primeiros dias de aprender sotaques e reconhecer fonemas que Breu repetiu a mesma música no mesmo trajeto diário para tentar entender por que Caetano disse if you hold a stone. Primeiro pensou que se sentisse the wait, a espera daquela transição, logo, entenderia algo. Algo de grande, qualquer coisa perto do que seria a sabedoria. Depois imaginou que a palavra certa fosse the wave e o importante de navegar era saber sentir a maré, a cadência de cada onda para compreender o esforço de segui-la e chegar através dela em algum lugar; ou não chegar simplesmente. Passou algum tempo entendendo que era essa a mensagem do marinheiro só e a metáfora de sua presença no livro. Por último consultou dicionários para traduzir que se sentisse the weight, o tal do peso da pedra, nunca estaria atrasada para entender.
Não entendeu. E nos dias mais frios se concentrava mais em cadê meu sol dourado? ou cadê as coisas do meu país?
Apesar de estar cercada de cidade por todos os lados, foi a primeira vez que o seu silêncio se desdobrava no coro daquela canção. Estava só, mas tinha fones de ouvido. Yes, she said.
Mas não demoraria muito para que Breu criasse uma nova casa para si, ainda que fosse um quarto dividido numa pensão de moças, convidasse alguns poucos falantes para entrar e encontrasse novas palavras para plantar seus pensamentos agora em outra língua. Na verdade, ela começou a gostar disso de silenciar o que já sabia e inventar uma nova história onde encontrasse novos sentidos para seus trajetos, numa espécie de reterritorialização intuitiva, que foi se dando aos poucos até o dia em que Breu se tornou não uma, mas a própria multidão, ainda que isso fosse muito mais movimento do que significado, muito mais táctil do que semântico.
Ela estava preparando a hora de voltar. E para isso, tudo que fez foi experimentar o trânsito, dessa vez não nos livros, nas autorias, mas no ser e estar do seu corpo. Por isso, o que mais Breu aprendeu a fazer foi ver a vida a pé. Era um andar sem destino, de descoberta, de risco. Quantas vezes ela não se perdeu e sempre no movimento de se achar sozinha, tempos depois, aprendia que era errática a descoberta de novos caminhos.
E era como se Breu estivesse correndo, mesmo quando andava devagar, penso. Correndo num fado ritmado, dramático, é claro, como se estive de mãos dadas com aquela cidade, numa grande roda, no frenesi dos versos de que ninguém volta ao que já deixou, e que mesmo assim ninguém larga a grande roda, o destino anunciado em violinos rapidamente fatais do tempo que corria no vagão, no trem, no metro, nas calçadas que movimentavam seus pés. Por onde havia entrado? Já não lembrava partida nem chegada. Breu se acostumara, semana após semana, a olhar pra frente e seguir, encarando o vento abaixo de zero de olhos pintados e muito volume nos cachos. Iniciou andando, mas chegou num ponto em que correu. E os versos eram implacáveis e muito claros e portugueses: ai que ninguém volta ao que já deixou.
Foi nesta velocidade que uma hora ela pegou um impulso e voou de volta.