Para Mariana Moura
III

Luíza Breu aterrissou. Não em qualquer lugar: aterrou diretamente em sua terra natal, sem escalas. Voltou outra, naturalmente. E mesmo antes já era muito diversa dos hábitos, sotaques e comportamentos que povoavam a velha cidade. Ficou dias num estado de pergunta sem resposta, sem tempo nem espaço, absolutamente sonâmbula do que fazia ali. Afinal de contas, tinha deixado a casa para trás há muito e naquele ponto da história não saberia dizer nem quem era nem que fazia ali. Era tudo novo e velho em tempo real.
Até que os co-autores chegaram. Ajudariam eles a escrever suas primeiras páginas, a tirar Luíza daquele ostracismo de página em branco, daquele instante imprensado entre o que havia sido e o que o será? Era o esperado.
Reencontrou-se primeiro com Luiz@. Enquanto o esperava no aeroporto, Luíza lembrava-se da última coisa que ele havia escrito em sua parede. Ele desenhou AR RISCAR, escrito junto, mas separando prefixo de verbo por cores. Ela pensava agora como isso o definia – ele era o risco – mas também como era o prenúncio de seu próprio movimento anterior, a dança de riscar o ar e o risco feito, impossível de remoção. Ele chegou e a levou diretamente pra rua, de onde não saiu durante toda sua estadia. Embriagaram-se um do outro para matar a saudade. E Luiz@ deu um empurrão nos dias, um grande giro na roleta russa para que tudo entrasse em movimento e para que pudessem tocar um ao outro assim, arriscando-se pelos nomes desconhecidos das ruas, nomeando tudo ao acaso e escrevendo diálogos pra contar o que tanto aconteceu entre o dia que se despediram no apartamento de Luíza, que havia se tornado um pouco do seu também, como quase tudo que virava “nosso”, posto que Luíza e Luiz@ eram quase os mesmos em safras de escrita como aquela. Um detalhe os faziam outros, embora como par fossem um duplo.
Luiz@ levava a outra a atirar-se pela vida numa avidez doida de dezoito anos, que era impossível de registro, nada além de frases soltas num bloquinho, pois ali vida escrita era vida vivida. Escrever era ar riscar-se. Foi assim que, numa faixa de 24hrs de uma quase-morte nas ondas até a vista secreta de um mar, descoberto no meio da avenida no primeiro dia de carnaval, ela vestida de bailarina, e ele maquiado de furacão doismil, saíram fantasiados para um banho de chuva provocando a todos com gritos de “quem tem medo de chuva?”. Amanhecia e eles andariam toda a beira-mar tropeçando em serpentinas e intervalos de risada até reencontrarem Luísa, no apartamento, de camisola, pronta para também escrever-se.
Luísa tinha um dom de ouvido editor, pensava Breu, pois narrar-te histórias era ouvi-las de volta, parágrafo por parágrafo, pois Luísa sempre entendia tudo, tim tim por tim tim. Era como se ela desse sentindo à narrativa, escrevendo junto, de ouvido, os relatos, encontrando neles arremates, bordões, títulos e frases feitas. Talvez porque fosse atriz e soubesse como ninguém encenar o texto de outro – além do seu próprio – e jogar com máscaras e performances e dramaturgias. Foi por isso que, no reencontro, Luíza e Luiz@ não hesitaram em contar tudo a ela ali mesmo, de pé, cheirando a suor, urina e álcool, porque Luísa ficaria em pé para ouvir tudo e nomear aquele cheiro de carnaval. E responderia à cena com um riso farto e devolveria ordem, cadência e pauta para a enxurrada de verbo que trouxeram as duas em sua chegada.
Seriam 3 novamente dali em diante. E começaram a fazer teatro por muitos dias de festa. Foram centenas de micronarrativas e frases soltas na folia que é impossível contar-lhes tudo. O que se sabe é que era tudo mágica e que em quase toda cena tinha alguém de cartola dirigindo secretamente a sucessão infinita de curtas e contos. Breu só se lembra que a mais significativa das horas foi quando sua fitinha do Bonfim, que Luiz@ a dera anos atrás, rompera no meio de um trio elétrico. Nunca uma fitinha do Bonfim sua tinha se partido e ela não se lembrava mais o que havia pedido nos três nós da tira. Mas sabia que a crença popular era de que a fita precisava cair para que os desejos se realizassem. Fizeram o ritual de jogar ao mar o fio. Feito isso, deu as costas e continuou, pois o destino continuava desconhecido e não saberia jamais quais seriam os seus três desejos de um passado tão longínquo. Afinal era outra, já disse, e o que mais cantara, ou melhor, berrara pelas ruas de carnaval foi “eu sou, eu sou, eu sou amor, da cabeça aos pés”. Foi a única coisa que soube e veementemente afirmou ali, na passagem, na avenida.
E aquele reencontro com os co-autores era, na verdade, uma nova despedida, pois quando o espetáculo urbano terminasse, Luíza ficaria só para ver o cenário desarmado, sabia disso e procurava esquecer. Ficaria só e escreveria tudo sozinha.
Elas se foram e Luíza ficou só. Foi aí que se pôs a olhar para o risco, o risco que trouxera desde o pouso. Desenharia alguma coisa a partir dele, pensou. Mas ainda não sabia nada de futuro e permaneceu ainda no tempo do trânsito, gastando muitas horas apenas para olhar o que já havia traçado.