Eu amei sozinha esse tempo todo

[Assim comecei a confissão para o único que me daria ouvidos naquela tarde morna e desocupada de sexta-feira, o único que guardaria meus rabiscos solene e devoto.]

Nunca precisei das respostas,
das correspondências
e dos afagos
Na imaterialidade de minha alma
Eu própria o amor
criei

[Deixei o verbo sozinho na linha sem pauta do bloco e mirei demoradamente aquela solitude antes de continuar]

Não vivi esse tempo todo
Apenas narrei tudo que sonhei

[Pus dois traços como se encerrasse mais uma nota, mas não me contive em insistir]

Das imagens mudas que assisti
Criei meus cenários com olhos fechados
Acordada em tempo real
Mas sempre a dormir em mim mesma

[Virei a folha]

E mesmo assim nunca passei
De uma narradora de outros
Dos personagens com os quais nunca contracenei
Dos diálogos nunca ditos em voz alta

[Interrompi para anotar no final da folha um verso da canção que ouvia, mas voltei]

Eu, nunca capaz de ouvir
Nunca passível de dizer, meu
Numa eterna maldição
De diário de menina
Palco de castelos nunca desfeitos
Destranco agora meu bloquinho
Único que me dá ouvidos nesta tarde morna e desocupada de sexta-feira
Único que guarda meus rabiscos solene e devoto.

“Minha voz, minha vida... minha bússola e minha desorientação” [Caetano]