Agora já podes entrar.
Senta.
E continua quando a escolha certa é parar.

Depois de um longo silêncio,
A senhora destino entra, senta, sorri.
Com o rosto inteiro sorri.

Como um corpo que dança, sorri.
Cada ruga, uma lembrança.

Cansadas as pálpebras
se curvam
e os olhos se fecham para ver-se

(Léo Mackellene no Livro dos mais pequenos silêncios )


A profissional de saúde disse que é uma bomba de endorfina a paixão. Que nem droga, pode virar vício, advertiu. É químico, nada mais. Somos viciadas em endorfina, ela disse. Mas, olhe, o iodo da cidade litorânea deixa a vida mais fácil e lânguida.

*

Ceci me aparece com sua palidez defunta na luz amarela de um dia de semana. Ela vem, anda um pouco, saindo do quadro de depressão do seu quarto de bonecas. Ela recorda amores nos meus ouvidos, me narra as cartas do 1º amor e ensaia a valsa dos 15 anos no círculo da pista de cooper. Já sei e mesmo assim ela diz que queria voltar atrás. Eu disse calma, que não se flui o que não é fluído. A paixão é uma coisa que te pega por trás e dá uma rasteira, Ceci. Por isso, pode andar olhando pra frente, distraída. Eu não sei passar, me disse. Eu também não sei. E agora?, provocou. Não espero. Até quando? Passo.
Meu tempo de menina me fita naqueles olhos carentes de vida real. Vejo o tempo que não passou, porque empacou na espera. O tempo que ficou na vida vazia de dois.
Ceci é a 5ª pessoa. A 5ª pessoa era Ceci.

**

Éramos cinco naquele dia. Relutei em sair de casa, destruída pela ressaca do anteontem, mas cedi ao convite insistente da 3ª pessoa. Impus uma condição entretanto: que a gente fosse pro lado de lá. E eu exigi, até o final, que o trato fosse cumprido.
Foi assim, com um cácácá mal-humorado de palhaça bêbada, de voz grave e palavrões sujos, que integrei aquela orquestra de agudos femininos abafados no carro que seguia confuso para o centro da cidade.
Paramos numa praça, finalmente por unanimidade, dessas com igreja na frente, crianças ao redor e, no caso desta, com um batuque ecoando vindo não sei de onde enquanto as carolas cumpriam seu dever na missa de domingo. Meus olhos foram imediatamente hipinotizados pela vista para o mar da cidade baixa.
Um largo muro nos separava do despenhadeiro que ligavam as duas cidades. Encontrei um coração inscrito na pintura descascada da pilastra e parei na calçada para enquadrá-lo. Foi nessa hora que João e Pedro atravessaram a rua de pedrinhas, intersectaram nossas retas e tremeram a minha foto.
Pedro tinha um par de contas verdes nos olhos que imobilizou os meus por todo o tempo daquele súbito e improvável encontro. Mas foi a voz de João que ouvi primeiro, quando, outra vez no impulso da aceleração do anteontem, fui atrás de movimento. Ele estava parado e só, na porta da igreja, enrolando um fumo, quando pôs seus olhos gelados e silenciosos sob os meus.
Começou ali e eu já estava no ciclo.
E foi Ceci que os convidou para sentar no bar da cruz, quando descemos todos a ladeira. Nenhuma delas teria tal impulso naquele momento, incluindo eu, que já havia ensaiado um.
Éramos cinco naquele dia. João escolheria qualquer uma das 5 para atacar. Talvez até mais umas do que outras, incluindo a mim. Mas ele sentou do meu lado, por acaso. João sentou do meu lado e Pedro uma cadeira depois. Ceci continuou à minha esquerda, doida pra que um deles fosse aquele que viria lhe tirar do abismo. Um dia viria, essa era a única certeza nos seus longos dias de nada. Mas Ceci tinha uma gagueira infantil, e continuou invisível para o destino e inaudível para os desconhecidos.
Ninguém seria capaz de ouvi-la, a não ser nós 4, que mesmo assim não aprendemos a deixá-la falar.

***
Entrei na casa como se algo mais forte que meu corpo, que diga-se de passagem estava absolutamente adormecido, me puxasse atrás da porta. Quando penetrei a primeira delas, um cheiro absurdo de memórias me encontrou. Tive águas nos olhos e arrepio nos pêlos quando imediatamente inspirei o cheiro da casa de minha vó pelas narinas. É o cheiro da casa de minha vó esse, dividi com os estranhos, que não entenderam quão imenso era o espaço pra onde aquele, físico, havia transportado meu corpo.
Era um cheiro de casa. Uma casa com cheiro de muitas décadas que descascavam a tinta das paredes, que enchiam de cupins as portas, que mofavam todo o resto, mas que fazia, e fez, daquele chão terra firme para os meus pés.
Reencontrei o cheiro da casa de minha vó ali. O cheiro que já não havia. O cheiro, há muito morto no passado, da casa do corpo de minha vó que já não existia, da alma de todas nós que viemos de dentro dela.
Entrei naquela casa que virou abrigo, gaiola, mas que sobretudo deixou outro cheiro em mim. Um cheiro novo, químico e lânguido. Ali me estendi todo ciclo junino de santo antônio, são joão e são pedro. Ali expandi o ano que enfim se movimentava pra fora, pro lado de lá, no colo da casa de João.
Curei a terra no chão de sua casa, na casa de seu corpo. Tirei as sementes das mãos, pus na janela com o sol, para secá-las, e me adentrei nas quatro paredes. Sarei a insônia e fechei a ferida aberta pelo sal. Dormi, deixando um pouco de me perceber, para que aquele fluxo me levasse, sem pensar nem narrar nada. Foi a partir dali que entrei em ação. Na verdade, foi a partir dali que reconheci a ação, pois ela já havia começado.
Eu já estava no ciclo quando cheguei ali. Mas foi João quem me levou para sua casa, me tirou do mar, me pôs no chão e me deu um pouco de terra para que eu pudesse arrastar pé.
Para chegar em João criei rotas nos grandes e pequenos veículos de transporte, atalhos em becos e esquinas. E foi com ele que voltei a me aventurar no bonde. Subi, desci, andei, várias vezes, como num passo de dança nunca completo, pois nada daquilo se coreografava. Era impossível grafar o meu movimento com João.
Por isso, segui, distraída, passeando pelos caminhos cruzados das novas linhas em folhas e janelas, por texturas outras nas histórias dos intervalos do ponto.
Corria sangue novo nas veias da minha cidade. E eu começava pelo centro, que era a margem dela.

****

Eu queria ser que nem você, me disse, com seus olhos de inveja branca.
Somos iguais, Ceci, temos partes idênticas dentro de nós. Eu também rodo, rodo, rodo, até cair. Assim, apaixonada mente, como você. Só que agora, aqui, estou aprendendo a usar o bonde.

Deve ser o ciclo do retorno.