Ryoko Suzuki, Bind Series

Era domingo, dia da semana nefasto para começos. Porque começar é sempre segunda ou, no máximo, sexta-feira. E a semana nunca começa verdadeiramente no domingo. Pois foi no silêncio agudo do fim de um domingo abafado e calorento que a personagem acordara. Despertara com um grande escuro de memória no juízo. Saiu do breu das coxias de onde havia levantado e caminhou até a boca de cena.

Encontrou-se com o vazio no espaço.

Um grande espelho, de ponta a ponta, tomava toda a extensão do fundo do palco. E só. O resto estava nu. Nada além de um calhamaço de folhas entulhadas no meio do tablado, com um grande foco de luz, branco e redondo, também ao centro.

A personagem aproximou-se da iluminação, mas não se pôs nela. Virou-se para o espelho, procurando algum indício do papel que deveria desempenhar naquela noite de estréia.

No primeiro olhar, a primeira queda: tropeçou nos laços da sapatilha desamarrada e caiu, exata, na luz. Foi de susto o tropeço. Na imagem refletida viu o horror de seu corpo mutilado: sua boca estava costurada com linhas vermelhas, secas de sangue. Tentou dizer algo, já de costas, atemorizada pela imagem do espelho, mas absolutamente nenhum tipo de som foi produzido. Nem um ruído sequer.

Não lhe doíam exatamente as perfurações da agulha. Era uma dor mais profunda, de corpo inteiro, que era reconhecida apenas por um eco dormente que surgia como se de dentro dela, e lhe parecia ser isso a prova de que não estava granulada nas imagens do plasma de uma tela: havia um corpo vivo naquela cena e lhe doía. Pôs-se a escutar aquela materialidade, quase encontrando um filete de voz capaz de tecer algum sentido, o sentido de estar ali.

Mas que sentir era aquele que também não lhe dizia? Onde estava o texto, a partitura da performance que deveria executar?

Não tinha nada decorado.

Nada dava a mínima pista do que deveria encenar.

Nenhuma linha garranchada nos papéis lhe indicava fala.

Só tinha ali a dor de ser, mas isso lá não é papel de uma personagem, pensou.

Assim nascia Ela.

Ela era seu nome. Melhor seria se chamasse ninguém, pensou ao olhar no espelho aqueles olhos arregalados à procura de si, já livres do medo de sua imagem deformada, já que aquilo era o que unicamente tinha de concreto para examinar. Tocou-se e mirou o retrato, repetidas vezes. Encontrou mais linhas nas juntas, costurando cada extremidade, cada dobra, como uma grande prótese.

Ela era escrita. Tinha corpo, mas não tinha voz. Mas havia algum tipo de inscrição naqueles remendos. Havia verbo costurado àquela carne, Ela tinha certeza.

As linhas aumentavam no fio das horas daquele domingo e mesmo o movimento foi lhe fugindo de controle. Ela perdia seu gesto livre, engessada no espaço de luz daquele refletor que já começava a lhe cegar.

Queria voltar para o engenho, desejou com os olhos fechados. Lá trocava livremente de papel e era infinitamente reinventada. Tinha sempre rosto, traços bem delineados, uma maleta cheia de maquiagens para as sombras e cores que bem conviesse. Lá se chamava nome, usava pronomes, executava verbos. Vivia em voz alta e mesmo quando emudecia, por vontade própria, era capaz de improvisar gestos balofos de sentido e olhares gritantes de expressão. Carregada da força inspiradora de mágicos pós de arroz, vivia o clímax das grandes cenas.

Mas por que diabos havia parado ali, se perguntava toda vez que abria os olhos para a luz e mirava o escuro daquela sala de espetáculo, sem conseguir lembrar do caminho que a fez chegar ali.

Será que havia parado num rascunho? Seria a imensidão daquele oco, entre um período e outro, o espaço em branco, o silêncio da pontuação?

Os hiatos de tempo, de cada alfinetada das novas linhas, a faziam escalar e depois girar, desalinhada, no chão da circunferência, num movimento involuntário. Neste ínterim, pequenos buracos começavam a se formar nos tacos do cenário, como se aquele feixe de luz fosse aos poucos se transformando em uma ilha.

Permaneceu assim por longas, mas longas horas mesmo, talvez nem fosse mais domingo e já nem houvesse mais tempo, nem espaço. Só havia a presença de Ela amarrada a uma luz.

Foi quando o eco quase inaudível que ouvia de dentro de si, aos poucos foi sendo amplificado naquilo que já não sabia se era de fato uma sala de teatro. A voz de outrem. Não decodificava o que ouvia, mas escutava, como um sussurro, a voz de outrem.

Ela estava sob o domínio de um desses autores de produção aleatória e solta, quis gritar e cuspir e praguejar aquele que julgava seu carcereiro. Mas tudo que lhe restava era aquele sentimento mudo de processo criativo frustrado, de texto insatisfeito e, por isso, incessantemente reescrito, do pulsar indeciso do cursor de computador piscando. No engenho ela nunca sentiu os espaços vazios das pausas de digitação, aquele silêncio cortante que amarrava cada vez mais a sua carne.

Estou presa no inacabado, pensou, por dentro, cerrando novamente os olhos.

Ela não fazia sentindo no claro. Não tinha cabimento. Mal cabia naquela roupa apertada de bailarina seca, no papel envelhecido, na projeção que iluminava nada mais que sua silueta.

De repente, um barulho estereofônico se fez e uma valsa invadiu os ouvidos de Ela. Abriu os olhos e avistou novamente aquele pedaço de chão cercado de escuro. Aquela valsa tinha qualquer coisa que lhe dizia algo.

Era uma bela valsa. Melancólica como toda valsa, mas graciosa e grandiosa como todas elas. Havia um tom de urgência e uma alegria esboçada de quem sai pela vida correndo de braços abertos. A personagem era dramática, assim soube. E Ela era drama, isso sabia.

A valsa se repetia incessantemente, tornando-se progressivamente ensurdecedora.

Era a prova dos nove: a personagem tinha finalmente sido materializada e agora era capaz de dançar.

Não conseguia era tornar-se.

Ali Ela era a Outra e não aquelas que já sabia encenar.

Permanecia a dor de qualquer coisa como a transfiguração, uma plástica sem anestesia.

A valsa acelerava. Ela dava voltas, voltas e mais voltas, com uma forte impressão de que as linhas a faziam marionete de um passo certo e calculado.

Como era cruel e suado e custoso o parto de Ela.

Apenas uma grande pulsação de qualquer coisa sem nome que endoidecia na vertigem de voltas, voltas e mais voltas.

Só a matéria era objeto de sentido. Só objeto era Ela.

Foi neste clímax de valsa, nos passos robóticos de um balé amordaçado, que Ela se sentiu, pela primeira vez, verdadeiramente observada. Tinha certeza agora da presença, em algum ângulo, do dono dos ruídos de outrora.

Aquela luz.

Aquela bola de luz era um grande olho, entendeu. Ela estava sendo dissecada pelo olhar daquela luz branca. Não era capaz de distinguir quem estava por de trás do refletor, mas sentia os olhos de outro sob si.

Sem mais nada a perder, e usando a única coisa que lhe sobrara daquela cirurgia de linhas tortas, encarou o grande olho branco.

Cegou-se.

Com uma pirueta suicida, caiu novamente no abismo do engenho, no escuro de uma gaveta.

Ela morreu valsando num domingo interminável.

Ela morreu nas voltas das linhas do Outro.

Muda e cega, como um nó, morreu a personagem.

Morreu no backspace de um teclado, no blackout de um palco.